Guia do Aborrecimento: Uma noite na Orquestra
Extraida do livro "Classificados"
6:30h - Saio de Pinheiros para chegar num metrô. Preciso estar na estação da Luz por volta das 8:15h. Acho que me adiantei demais. Mas esperar não vai ser problema, estou com meu livro e um iPod.
8:40h - Chego na estação da Luz depois de pegar uma chuva torrencial e levar uma hora e meia para subir da avenida Brasil até a Paulista. O concerto em que meu querido amigo Lucas Espósito estará tocando com a OSESP, a melhor orquestra do Brasil, começará em 15 minutos. Na mesma noite haverá a participação de Nelson Freire, um dos melhores pianistas da história da música erudita. Não é de bom tom se atrasar.
Procuro dentro do metrô uma indicação para "Sala São Paulo" ou quem sabe "Estação Júlio Prestes". Tem um mapinha bem safado numa das paredes mas como minha geografia da área é equivalente à minha geografia do Butão, não ajudou muito.
8:43h - Pergunto o caminho para uma funcionária do metro. "É só pegar a saída da Rua Não Lembro O Nome Agora". Pensei: "Puxa! Que batuta!. Vou conseguir chegar na hora" e me dirigi alegremente à saída da Rua Não Lembro O Nome Agora imaginando que cairia praticamente dentro da "Sala São Paulo". Ledo Ivo engano. Ao sair, me deparo com um belíssimo lugar apelidado singelamente de Crackolândia. Onde pessoas caídas nas ruas te olham com um olhar amigável tipo o-que-é-que-esse-playboizinho-filho-da-puta-tá-fazendo-na-nossa-área. O som que se ouve é uma mistura de forrós e funks saindo de todos os estabelecimentos ao mesmo tempo. Portinhas de pequenos hotéis decadentes (a entrada é sempre uma escadaria comprida) estão grudadas a portonas de grandes botecos decadentes. Não se vê um policial na rua. Ainda há restos de meias-pessoas esperando ônibus para universos muito muito distantes.
8:47h - Encontro algo que se parece com um guarda. É apenas o vigia de uma Drogaria. Na Crackolãdia tem drogaria.
- Por favor, o senhor sabe onde fica a Sala São Paulo?
- ???????....
- Estação Júlio Prestes....
- Sei não, rapaz.
- Ah tá. Valeu então.
Continuo o meu caminho de acordo com uma vaga lembrança da direção que o Lucas tinha me dado horas antes.
-Ei! - é o vigia novamente, Me viro.
- Se eu fosse você eu não ia por aí. É meio perigoso.
Volto. Já tinha achado o caminho até aquele ponto assustador o suficiente. Talvez eu estivesse enganado. Fui para o outro lado seguindo uma torre de relógio. o Lucas tinha me falado algo sobre um relógio.
Ando por lugares cada vez mais isolados. Estava borrado de medo. E olha que eu nem tava do lado perigoso. Chego na torre do relógio. Era a estação da Luz. A de trem. Nada de Júlio Prestes. Encontro uma viatura e vou perguntar.
- Por favor, etc etc...
- É só seguir essa rua.
- E é tranquilo?
- Sossegado.
Quando me dou conta, estou a cem metros da drogaria. Os guardas me mandaram para a Rua da Morte! Aquela proibida pelo vigia. E esse era o caminho para a sala da melhor orquestra do Brasil. Em meio a ruas escuras e olhares também escuros, chego na tal da sala. Estou transpirando muito. São 8:57h.
É impossível não fazer a comparação. O universo do extremo formal cercado pelo extremo informal. Formal no sentido mais cru da palavra. A sala São Paulo é forma pura. Tudo no seu interior foi exaustivamente pensado e repensado para sair exatamente como deve ser. A forma é clara, fixa. O improviso é mínimo. Na arquitetura, nos uniformes da orquestra e das moças do cafezinho, na música, nas roupas do público, na toalha do banheiro. São distribuídas balas para amenizar as tosses durante o espetáculo. A ordem está em tudo. A hierarquia é rigidamente respeitada. O maestro é meu pastor, nada me faltará.
Do lado de fora, a forma desaparece. Tudo é informal. O comércio, a arquitetura, a mistura de músicas (que sem se misturar já seriam uma bagunça), as roupas, os cheiros, ninguém é de ninguém, nada é controlável. É a vida real que entra pelos sete buracos da nossa cabeça. E ela não é bonita, não é bonita, não é bonita.
Mas, ai de mim que pensei que estava a salvo na Sala São Paulo.. Não há civilização nem organização que se mantenha. Porque gente é uma merda. A miséria demora, se esconde, mas aparece. E nessa noite, não foi diferente. O mundo perfeitamente controlado se viu invadido. E não foi uma única vez.
9:08h - John Neschling entra sob aplausos entusiasmados. Silêncio absoluto. "Pirulin". Alguém desliga o celular NESSA hora. Silêncio. O maestro respira fundo. Sai do palco.
9:09 - "Pedimos aos senhores que desliguem os aparelhos celulares, bips, relógios ou qualquer aparelho eletrônico". É o mesmo aviso que ouvimos há menos de um minuto.
9:10 - John Neschling entra sob aplausos entusiasmados. Silêncio. A orquestra ataca com um pianíssimo. A música vai crescendo aos poucos.
9:11 - "Pirulin". O maestro faz sinal para a orquestra parar. 13.000 borboletas gigantes se estapeiam no meu estômago. Silêncio. Silêncio.
9:13 - O espetáculo recomeça. E vai até o final sem mais interrupções. No meio do segundo movimento, uma mulher saca sua máquina digital e tira uma foto. No começo do espetáculo, junto com o aviso de desligar celulares, há um aviso para não bater fotos. O maestro faz um sinal para ela não tirar mais fotos, mas dessa vez a música continua. A partir daí, os incidentes acabam. Mas as 13.000 borboletas ficam se estapeando até o final do dia.
O diabo não é o Bush, não é o Bin Laden, não é o Lula. O diabo somos todos nós e nossos aparelhinhos eletrônicos. Mas eu tenho minha água benta. Ao entrar num cinema, casa de espetáculo ou coisa do gênero, eu não desligo o celular. Eu garanto meu lugar no céu arrancando a bateria.
P.S.: Isso não é um conto. É uma história real. Nada do que foi dito nesse post foi inventado. pode perguntar pra Rhaissa....
5 Comments:
É, Filipe. Luana e eu tivemos uma experiência muito parecida quando, há uns três anos, fomos ver a orquestra de Cremona na Sala São Paulo. Tolinho que sou, achei que a região pudesse ter melhorado depois de todo esse tempo. Esqueço que nessa taba nada muda. E quando muda, é pra pior.
PS: Bota lá o crédito da tira do Laerte, rapaz. Nosso blogue não tem grana pra se envolver em processos por direitos autorais.
O Nelson Freire não tocava viola caipira?!?!
JUCA DISSE...
"Isso é que dá...voce querer frequentar..."
Filipe, sabe como é que se resolve essa situação?
Ligue para a ouvidoria da Prefeitura e peça que avisem o Kassab pessoalmente do que aconteceu. De repente ele tem mais uma daquelas crises de "macheza" e acaba indo até lá no meio da noite para dar uns gritos e botar todos os crackeiros para correr.
Crackeiro não vota mesmo, não é?
Nada como ter um prefeito avesso a populismos
'Isso é que dá...voce querer frequentar'
HHAAHAHAHAH
maravilha de blog, a família Taturana é de tirar o chapéu!
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